Tão bom morrer de amor...

Estava distraída. Era uma normal tarde de quinta-feira, no meio de um verão sufocante. Acabara de finalizar os textos para levar à editoria. Apressada, olhei apenas para o sentido contrário da rua, apenas para atravessá-la na pressa rotineira. Voltei o olhar para a rua quando notei uma figura nada normal. Não era como se eu estivesse de cara apaixonada, longe disso, prometia a mim mesma que alguns sentimentos deveriam ser mais compreendidos antes de explorados experiencialmente. 

Lá estava ele. Ascendia um cigarro no momento em que o vi. Jogou os cabelos charmosamente de lado sem tocá-los, ajustou a gola da camisa polo roxa e sorriu de lado, como se soubesse da minha, nada discreta, observação.

Bem, balancei a cabeça, como quem quer, à força, colocar ordem às ideias e entrei correndo no prédio. O elevador tinha acabado de chegar e apressei os passos para entrar logo e afundar-me em mais pautas para o final de semana que estava prestes a chegar. Os segundos que demoram até o andar foram suficientes para rememorar o que há pouco me enfeitiçara na calçada do prédio. Novamente faço um leve balançar com a cabeça.... mania boba!

Sem ver as horas passando, após entregar e escutar todas as recomendações da matéria fria que tinha feito hoje de manhã, olho pro relógio e, graças a Deus, hora de emendar alguns drinks no barzinho da rua ao lado do jornal. Fazíamos sempre isso, eu e as meninas das outras editorias do jornal. Naquele dia sentia que precisava de mais momentos relaxantes, acho que pressentia a chegada de um furacão a devastar minha calmaria, de novo!

Como num terrível filme clichê de comédia romântica, vi o mesmo tal galã de horas mais cedo, em frente ao bar em que ia sempre. Com novo cigarro na boca, já finalizando uma tragada profunda, jogou-o meio fim abaixo e entrou no bar, arrumando a gravata borboleta (fazia parte do uniforme tão especialmente escolhido para alegria feminina que ali frequentava). Lá dentro me permiti. Mesmo com a promessa de tomar cuidado após longa recuperação da última embriaguez amorosa em que me forcei a entrar!

Sem muita preocupação deixei-me encantar. Não se se foi pelo jeito tão meticuloso em arrumar aquele cabelo, ou o jeito grosseiro em jogar fora aquele nojento cigarro ou a ousadia do roxo em pleno verão escaldante! Sentia-me apenas seduzida, literalmente seduzida. E nem perto de mim o rapaz ficava. Acho que minha imaturidade amorosa me enfia em enrascadas assombrosas.

Quando finalmente consegui fazê-lo me trazer a décima Caipirinha - somente os outros garçons me serviam, até parecia que ele sabia que era um alvo – peguei em sua mão e me fiz entender apenas com um leve sorriso. Ele apenas retribuiu com o mexer dos lábios. Não entendi mais a noite, só lembro de me aconchegar no ombro dele dentro de um carro e reconheci a porta do meu apartamento. Nem sei como subi as escadas, ainda que no primeiro andar, tinha um lance para chegarmos até lá! Lembro também de me apavorar com tanta vulnerabilidade. Tudo apagou-se.

Acordo sabendo que era uma bela sexta-feira, pós ‘happy hour’ de longas horas e intenso encontro. Por incrível que pareça sinto o cheiro de café vindo da cozinha, gostoso, inebriante – me acordo definitivamente atrás de uma xícara. Não me surpreendo ser ele ali, mas sim por ele ainda estar ali. Um breve cumprimento com a cabeça não é suficiente pra ele que me beija inesperadamente. Arruma os cabelos, sem as mãos, como se fosse uma marca sua... e me vejo encantada, indiscutivelmente. Vê-lo tão à vontade no território que é meu me deixa temerosa do quanto deixei-me levar por alguém que simplesmente apareceu.

Encho a xícara, como sempre, e tento apreciar a companhia. Ele percebe meu desconforto. Senta ao meu lado e sorri. Reviro os olhos numa atitude infantil de arrependimento. Ele apenas observa, ri gostosamente e diz: acalma-se, nem comprei outro maço. Só venho quando achar que me quer de novo e lhe garanto que faço café quantas vezes necessárias.

Ri também, mais tranquila. Parece que sua simplicidade foi certeira. Acariciei seu rosto e ele copiou o gesto. Deixei os papéis com as pautas do final de semana na mesa mesmo e me desconectei disso tudo. Quebrei a promessa que fiz a mim mesma. Tanto faz! “Tão bom morrer de amor! E continuar vivendo...” (Mario Quintana).

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