A próxima página do próximo livro

Lá estava eu, sentada à mesa de sempre, na confeitaria de costume. Mesmo horário, todos os sábados, mesma cadeira. Já até me acostumei com o fato da cadeira ter um das pernas bambas, acabo que danço ao tomar meu café.  Deliciosamente perigoso!

Manhã fresca, com leves pingos de uma chuva que estava a se avisar. Café quente e forte, acompanhado de uma pequena colher com um docinho em forma de espuma. Hoje foi de baunilha mas posso transitar entre canela, hortelã, capim cidreira (meu preferido, inclusive). Apenas curtindo meu pãozinho recheado e abrindo na página mais recente do livro da vez. Sinto que não o acabo nunca, a lista de espera de novas leituras só aumenta e eu presa na história em que encontram um rapaz que não conhecia seu irmão gêmeo e ambos fazem terapia com a mesma profissional sem saber... Enfim.

Nada fora do que costumo fazer, até então. A não ser um incômodo que senti. Um pequenininho, leve, apenas uma sensação de que alguém me observava. Um olhar atento aos meus gestos, e goles e letras lidas pelos olhos apoiados, nesta idade, por um par de óculos. Olhei rapidamente para o outro lado da rua e entendi.

Nem posso dizer que o encontrei, ele é quem foi o detentor da ação: ele me encontrou e não disfarçou. Automaticamente abri um sorriso. Sem pensar, claro. Não estava demonstrando necessariamente alegria em vê-lo, foi um gesto de educação inata mesmo.

Acredito que ele leu esse meu ingênuo gesto como um convite a uma aproximação. Confesso que foi inesperado. Nosso último contato deveria ter deixado claro que isso não aconteceria novamente: aproximação. Bem, não foi dito, expresso em palavras. Mas sabíamos. Soubemos no momento em que nossos corpos se soltaram e perderam a vontade de voltar a se encaixar; soubemos no instante em que meu suspiro não era de alívio por ter você, mas peso por ter que lidar com sua bagunça proposital.

Me olhou, atravessou a rua, cumprimentou-me, puxou a cadeira e sentou. Segundos calados. Eu não achei que tinha obrigação nenhuma em começar uma conversa. Estava me martirizando por me colocar nessa situação, por deixar que chegasse tão perto novamente; pelo menos presencialmente. Sem sentimentos.

Quebrou a quietude mútua com a pergunta clichê daqueles que não sabem como iniciar uma conversa: está sumida, né?

Não consegui disfarçar a virada de olhos. Ruborizou no mesmo instante em que percebeu que aquilo não caiu bem. Ai, esse meu jeito de chegar primeiro com as expressões faciais e depois ter que corrigir com um belo sorriso amarelo. E assim o fiz, sorri e concordei: sim, muito trabalho, menos leitura do que eu gostaria e desejos de mais cafés solitários. Eita, não pensei antes de falar. Já foi. Só esperar ele se levantar e se despedir e não nos esbarrarmos mais!

Não aconteceu. Acho que ele se sentia confortável o suficiente para escutar a alfinetada espontânea e lidar com ela numa reflexão interna. Fitou-me, com expressão calma. Sorri sem graça, a ponto de aparecer as covinhas das minhas bochechas deveras rosadas pela brisa gelada que passava naquela manhã.

A essa altura o café já estava gelado, o livro fechado e eu aguardando as demais palavras insossas que viriam dele. Mas foi no primeiro gesto que ele me parou totalmente: pegou minha mão, com delicadeza, e encaixou entre as suas duas. Respirou profundamente, como se tivesse tomando coragem para o que estava planejando falar. Com isso eu já não respondia por mim, meu coração palpitava e eu ficava com medo dele escutar as batidas daquela pequena distância... como eu explicaria isso? Como eu conseguiria explicar que fico incomodada com o toque dele, depois do que decidimos mutuamente? E então ele só jogou no ar: estava com saudades. Agradeço ter me permitido olhar você tão de perto novamente. É um privilégio.

Agora sim, soltou minha mão cuidadosamente, colocando-a na mesa, levantou e seguiu um rumo que eu nem reparei para onde. Atordoada só pensava o que aquilo poderia significar. Para ele não, hoje já não me interessa. Mas pensava o que poderia significar para mim mesma.

A reação do meu corpo, em relação ao toque dele, deveria querer me dizer algo que ainda não tinha conseguido decifrar. E quer saber, nem me forcei a isso. Há dúvidas que precisam permanecer assim até a resposta seja definitivamente compreensível. 

Por segundos somente, e apenas isso, segundos, eu pensei que seria apenas pelo hábito que desenvolvi em senti-lo por completo, quando nosso compromisso era nos termos mesmo. Com a decisão de não sermos mais amantes, perdeu-se o traquejo e isso fez meu corpo reagir como uma novidade. Assim quis eu crer. Nada definitivo.

Com o líquido gelado na xícara, pedi ao atendente trazer-me outro. Esquentar o peito com café recém passado poderia acalmar-me a mente novamente. 

Não me obriguei, não me impus uma resposta imediata a tudo aquilo. Só ficou no ar a lembrança de que um dia eu fui mais dele do que de mim mesma. Notadamente eu entristeço ao lembrar disso. Como eu compreendi, tardiamente, que ele não saberia lidar com todo o sentimento oferecido, me recolhi e dei fim em tudo.

O café chegou, abri o livro novamente e, antes de ler o número no canto da página, olhei para o horizonte que começava a ficar de um azul lindo. As nuvens se dissiparam e dava para notar claramente os raios de sol ganhando força e saindo por entre elas. Ali o horizonte ganhou um outro sentido além da vista matinal daquele momento. Voltei ao livro e vi que a página já era outra, já tinha terminado aquele capítulo sem nem perceber. 

E isso nem é sobre virar a página literalmente...

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