Frescor

Terminou de alinhar os botões da camisa devidamente passada. Deu uma última olhada no espelho, ajeitou uns fiozinhos de cabelo loiro que lhe desciam a testa e limpou resquícios de batom no canto da boa. Sem tempo de escolher o perfume do dia, manteve o vidro que já estava na bolsa e saiu apressada, batendo a porta de casa – neste momento lembra o tanto que já brigou por isso: bater a porta, é só ter cuidado e encostá-la. Mas enfim, o fez e não tinha tempo nem de se culpar pelo acontecido…

Estava apressada porque não gosta de atrasos. Detestava fazer alguém esperá-la, da mesma forma quando acontecia o contrário. Que falta de compromisso! – pensava. Assim, não queria correr o risco e saiu minutos mais cedo do que havia planejado, mas, ansiosa, ainda esperava não se atrasar.

Ligou o som do carro e deixou ali, rodando a playlist da própria rádio, sem muita exigência de ritmos. Gostava mesmo era da companhia das palavras cantadas em melodias… Limpou os óculos e os colocou, driblando a luz excessiva daquele dia de primavera. Retocou o batom, a cor intensa a deixava segura, manteve o vermelho mesmo; delicadamente alinhou o tal fio de cabelo que teimava em cair em seu rosto e o acertou. Nem percebeu que o vizinho a observava com dúvidas se a ajudava em algo ou era apenas a moça já conhecida por sua distração e estava ali apenas a passar o tempo; demorou para ligar o carro.

No caminho observou os canteiros floridos, provas de que a melhor estação do ano já estava presente. Nem pensou duas vezes, parou no acostamento e clicou as flores, várias e várias vezes, se infiltrando nas coloridas pétalas ou as deixando brilhar sozinhas no foco da câmera.

Entrou novamente no carro, ainda com o som a tocar, sorriu de leve ao ver o lindo resultado daquela paradinha peralta. Seguiu o caminho, agora com mais receio do temido atraso. Nas primeiras notas da nova música que surgia na rádio aumentou o volume e cantou. Seguiu a voz da cantora, gesticulando e coreografando como se fosse sua própria consciência cantante. Não se preocupava com olhares alheios, vivia para si e sabia de uma possível plateia disfarçada. Acalmou os ânimos ao virar a esquina da gelateria, local do encontro. Olhou rapidamente nos dois lados da rua, sem vagas. Parou num estacionamento próximo, a alguns passos a mais do que gostaria de caminhar. Não por marasmo corporal, era muito mais simples, não queria sujar a sola da altíssima sandália nova. Mas, cada desejo lhe concede um preço a ser pago, vai da vontade de realiza-lo para acertar este valor!

Foi. Cuidadosamente caminhou até a porta da gelateria e foi recepcionada pelo facchino, elegantemente vestido de branco. Notou, com certo orgulho, que ele usava luvas tão brancas quanto ao seu colarinho. Procurou sua companhia em algumas poucas mesas vazias e não achou, escolheu aleatoriamente e sentou-se. Ajeitou a saia na cintura, bem marcada, como gosta. Passou a mão nos vincos para deixá-los mais marcados. Não hesitou em receber o cardápio oferecido pela camariera.

Escolheu seu sorvete, physalis com cioccolato. Ah que delícia, nem demorou a chegar. Deliciando-se com a novidade, recebeu uma mensagem pelo celular: encontro cancelado. Mi scusi. Os olhinhos chegaram a marejar, por um segundo o sorvete perdeu a graça, o ambiente se enegreceu… Por um segundo, apenas isso. Leu a mensagem apenas. Não respondeu e voltou ao seu mais novo prazer das tardes frescas da primavera. Sua companhia lhe bastou naquele momento, e que venham mais frescores como este!

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