Desacertos compartilhados

Desde que chegou, tarde da noite, entrou para o quarto e de lá não mais saiu. Fui acompanhando as cores no céu até que ficassem claro, com os primeiros toques dourados no barrado da cortina… Ela ainda estava lá, entre lençóis e murmúrios.

Eu devia saber que a percepção importa. Ela diz que planeja o futuro, mas, passando na memória tudo que já aconteceu, tenho minhas dúvidas, e muitas. Será que quem pensa no futuro realmente pretende chegar até ele? Está verdadeiramente disposto a fazê-lo mais presente do que os pensamentos e atitudes de agora?

Ela dizia sempre que sim… E mesmo que não dissesse neste exato momento, eu sentia que ela queria que eu entendesse que ‘sim’. Neste exato momento, a alguns metros de distância dela, com uma parede entre nós… Eu estava sentado na velha poltrona de couro, esfolada pelo uso continuo, apenas a fitar a parede da sala que dava direto ao quarto dela. Como se a aproximação me fizesse senti-la, entender seus pensamentos noturnos transformados em frustrações matinais… E, me desculpem os céticos, mas as paredes vibravam com a opinião dela, tremiam a cada suspiro dela… E o que ela queria, só e somente, era descansar sua solidão!

Solidão… que consistência tinha isso a essa altura do nosso complicado relacionamento? Não me via ausente. Poderia concluir que a tristeza que girava em torno de nós, e que era mais constante que ausente, a fazia ansiar pela solitude, achava melhor do que enfrentar qualquer que fossem nossos desacertos.

Não queria me sentir ofendido por esses pensamentos que, até neste momento, eram apenas meus; conclusões de quem adianta os problemas sem nem ao menos se dar o trabalho de acompanhar suas soluções. Não havíamos trocado uma palavra nos últimos instantes e eu ainda insistia em manter uma conversa com ela. Conversa essa que eu fazia ambos de nós… Fundamentado de que as pessoas são melhores no abstrato, e eu queria ser este melhor, já que via nos olhos melancólicos dela – que há tempos se apresentam – que mudei. Desde que nos conhecemos, eu mudei… E as lágrimas alheias me certificam de que foi uma mudança mundana, sem nenhuma razão a se comemorar.

Desconfortavelmente mexi na cadeira. Queria esperá-la acordar e ser a primeira sensação do dia para ela… meu objetivo era que isso lhe causasse conforto e duvidava de que conseguiria atingi-lo.

Já com o sol a esquentar o tapete da sala pela janela semiaberta, me inquietei ainda mais… Percebia o tempo ainda, apesar das divagações que ocorriam desde a madrugada… horário de conversas tolas, fundamentais e cansativas… Senti acalentado quando vi a porta se abrir. Sorriu, um sorriso ingênuo, descansado… Nesse momento sei que ela lembrou dos nossos sentimentos mútuos e os considerou. Nessas horas vemos que a memória dá a imortalidade aos momentos, bons, preferencialmente. Os ruins nos manteriam insanos com a frequência que podem surgir sem serem bem quistos… Ou quistos de forma alguma.

A abracei. Comecei o contato por mim, mesmo que soe egoísta, foi por mim. Precisava de uma certeza de que eu ainda tinha o direito de toca-la. Com isso ela chegou pertinho, encostou os lábios no meu ouvido e sussurrou: eu era apenas uma mulher sem passado e você o transformou. Infelizmente o transformou em algo vil. Todos cometemos erros, talvez tenhamos cometido os mesmos e é isso que nos une agora.

Terminou seu sussurro apertando ainda mais seu corpo contra o meu no abraço que eu iniciei… Na verdade, eu havia iniciado várias situações pelo que bem entendi… Olhei seu rosto delicado, e as lágrimas não se envergonhavam em descer. Sorriu novamente e se voltou para dentro do quarto, dessa vez com a minha companhia. E com a de nossos fracassos também…

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