O que nos faz falta

O sol brilhava forte, quase não conseguia abrir os olhos pela incomoda claridade; mesmo assim, este contato era uma dos momentos que ele mais apreciava. Há algum tempo este era o instante em que ele sentia-se vivo, o calor o fazia lembrar de quando podia ser livre…

As peças do dominó nas mãos já suadas aguardavam sua vez para serem dispersas. Era um jogo monótono mas fazia o tempo passar com menos lentidão naquele imenso calabouço em que ele se encontrava. A diversão patética que o simplório jogo lhe proporcionava também lhe mantinha pensante, era um lugar em que a insanidade o alcançava com rapidez e silenciosamente.

Lembrava os motivos pelos quais estava ali, sabia que havia justificativa, porém, sempre se sentia inconformado pela distância daqueles que lhe eram queridos. Esta época então era mais dolorida. Recordava das luzes diversas espalhadas pela cidade, dos enfeites cuidadosamente escolhidos para celebrar data tão importante, do cheiro do assado no forno que era preparado com tanto carinho.

Desperto por um empurrão do companheiro, jogou sua peça à mesa e desfez o jogo ainda no começo. Levantou chateado e encostou a face na grade suja e quente. Por alguns minutos fechou os olhos e viu o rosto da Michele. Ah, quanta saudade! Seus olhos castanhos, pele morena, seu rosto arredondado em volto com os cabelos cacheados… Será que ela vem me ver este ano? Nas cartas trocadas tinham sempre promessas que somente às vezes eram cumpridas: “este ano eu levo a pequena”; “vou te ver em todas as visitas a partir de agora”; “estarei te esperando aqui”… Não a culpava por tanta distância principalmente porque nem ele podia cumprir suas próprias promessas…

Abriu os olhos e viu sua realidade novamente. Suspirou profundamente e foi em direção ao banheiro. Jogou água no rosto, estava fria. Olhou-se no espelho e não reconheceu o rapaz alegre de algum tempo atrás. Os olhos fundos, tristes, com olhar cansado, cabelo desalinhado e sem corte. Estava ansioso pelo horário de visita, naquele dia eles concediam algumas horas a mais. Passou as mãos nos cabelos, limpou uma pequena sujeita na gola do macacão e saiu para seguir a fila de volta para dentro.

Já na cela sentou na beirada da cama, com as mãos juntinhas fez uma pequena oração, não que fosse costume, era pela data que se aproximava. Pediu apenas aquilo que geralmente esquecemos de felicitar: o conforto dos seus, o abraços dos próximos e a união consigo daqueles que lhe são amados. Na verdade, era muito simples seu desejo só vê-la, só queria isso: vê-la. Saber que o sentimento ainda estava ali, que a fazia querer saber dele e que, quando saísse ainda tivesse o direito de beijá-la tão apaixonadamente como a primeira vez…

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Crônica para um novo ciclo

Meu controle

Bem viver