Bater o dedo na porta chateia!
Nada de especial era aquela noite. Apenas mais um passeio, sem muito interesse na programação. Cansada pelo dia exaustivo de trabalho, atendeu ao telefone com uma voz que mostrava esgotamento. “Ok, vamos. Passa aqui já já, só vou tomar banho. Te amo”, disse ela bem desanimada.
Ao passo em que se arrumava à espera dele, foi lembrando como dormiu mal na noite passada. Muita dor de cabeça. Tinha medo especificamente de morrer com aneurisma. Pensou muito nisso… quando viu, já estava pronta. Logo que saiu do quarto escutou o ranger do portão já enferrujado.
Já que se dispôs a ir, deu um jeito de logo se animar. Foram ao carro, ele com muitas novidades do dia. Pessoas que encontrou no trabalho, vendas que finalizou, planilhas enviadas… Quase não prestava atenção, pensava mesmo era na dor de cabeça que aos poucos voltava irritantemente.
Percebendo que ela tinha o olhar vago para fora da janela do carro e não pronunciou nem um comentário, perguntou se tudo estava bem. Suspirou profundamente e disse à ele que sim, só preocupava-se com a dor de cabeça. Logo, contou-lhe que foi o motivo de mal dormir.
Pensando ainda no trágico acontecimento que seria morrer, suspirou mais uma vez e imaginou como seria de sua partida estivesse perto. Como ficaria sua filha, seus pais, seus irmãos? E a casa, as contas? E ele, sentiria muito? Parou aí! Olhou pra ele de soslaio e, finalmente perguntou: como você ficaria se eu morresse?
Na verdade, fez a pergunta já imaginando a resposta, ele tinha o poder de falar sempre bobagens, ainda mais quando se tratava de dar ‘a resposta certa’. Automaticamente ele respondeu: ah, vou ficar muito chateado!
Ela parou de respirar! A frase ecoou em sua cabeça: vou ficar muito chateado… Ele procurou ainda incrementar a ‘cagada’ que acabar de dizer. “Bom, a gente nunca sabe como vai se sentir, mas meu conforto seria que você estaria num lugar melhor do que eu”. Ai, aí ele acabou de vez com a esperança dela.
Tudo bem que ela sabia que coisa boa ele não ia dizer, mas isso! Ele logo percebeu que deveria ter sido mais enfático no sofrimento aí… Mas ela nem procurou estender a conversa, sabia que ele tinha dificuldades em expressar seus sentimentos. Ele insistiu na conversa até que ela disse: realmente achei que não ia gostar do que você diria mas eu me coloquei disposta a entender mas, chateado! Chateado ficamos quando batemos o dedo na porta ou esquecemos algo em casa e temos que voltar para buscar, mas a morte da pessoa que amamos? Ah, isso é mais que chateação.
Já prevendo um fim descontente com a continuação da conversa, dessa vez, assim como têm sido nas últimas vezes, ela preferiu o silêncio… de ambos. Pelo menos poderiam pensar sem antes dizer mais bobagens.
Ao final da noite, mais cansada ainda, em casa, antes de dormir foi lavar os pés – não dormia com os pés sujos – preguiçosa pela exaustão nem acendeu a luz do banheiro. Apenas tirou a roupa a caminho do chuveiro e… “Ai, saco!”. Ele logo veio: o que foi? Mal humorada respondeu: “Nada, apenas bati o dedinho na porta. Fiquei bem chateada, mas, pode ter certeza de que não terá nenhum funeral.” Os dois riram e, nessa noite, a dor de cabeça deu uma trégua.
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